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Fernando Torrão

Fernando Torrão

 

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade Lusíada
Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra

 

 

TEXTO INTEGRAL
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Solicita-se o nosso parecer para saber se, em processo penal, a decisão da questão civil prévia e prejudicial à questão penal, proferida em segunda instância, admite recurso para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos da lei processual civil e se, havendo “incompleição do julgado” na decisão penal condenatória proferida em primeira instância, haverá efetiva dupla conforme por condenação penal em segunda instância impeditiva de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal que exceciona o princípio geral da recorribilidade das decisões judiciais sufragado pelo artigo 399.º do mesmo diploma
 
 
 
 
 
CONCLUSÕES
 
 
I - Quanto a questão prejudicial civil
 
 
  1. O halo conceitual da proposição jurídica “[…] ilegitimamente se apropriar” (enquanto elemento do tipo legal de crime de peculato, previsto e punível pelo artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal) é densificado por conceitos – “entrega a título não translativo da propriedade”, “mera detenção”, “inversão do título da posse” – de natureza essencialmente jurídico-civil.
  2. No caso sub juditio diversas questões de direito civil (e de direito comercial) se suscitam – entrega real de cheques ao portador (artigo 483.ºdo Código Comercial), contrato de depósito irregular (artigos 1205.º e 1206.º do Código Civil), contrato de mandato sem representação (artigos 1180.º e seguintes do Código Civil) – que prejudicam a subsunção dos factos aos conceitos normativos enunciados e, por consequência, aos elementos do tipo legal de crime. São questões autónomas de direito civil, prejudiciais à questão penal, e que no processo penal se suscitam e se incorporam ex vi do princípio da suficiência (artigo 7.º do Código de Processo Penal).
  3. Se a questão civil decidida no tribunal civil tem um determinado iter em matéria de recursos, então, se decidida no tribunal penal, deve essa questão percorrer o mesmo iter processual, de sorte a garantir o respeito pela igualdade “entre todos os recorrentes em matéria civil, dentro e fora do processo penal” (Paulo Pinto de Albuquerque). Assim o reconheceu o legislador no que respeita ao pedido de indemnização civil no processo penal – em conformidade com o princípio da adesão (artigo 71.º do Código de Processo Penal) – na atual redação do artigo 400.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, em virtude da revisão operada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto.
  4. Questão materialmente idêntica se coloca no âmbito da questão de direito civil prejudicial (à decisão penal) incorporada no processo penal por via, desta feita, do princípio da suficiência. Também neste caso deve o iter a ser percorrido para efeitos de caso julgado material ser o mesmo dentro e fora do processo penal. Mas como se não refere o artigo 400.º, n.º 3 do Código de Processo Penal às questões civis prejudiciais incorporadas nas sentenças penais, existe uma incompletude (lacuna) atinente à matéria de recursos no Código de Processo Penal. Tal como existia antes da entrada em vigor da Lei n.º 48/2007, no que respeitava também a matéria de recursos, mas relativa a decisões de indemnização civil no processo penal.
  5. Se esta última lacuna foi integrada pelo legislador através do atual artigo 400.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, aquela (relativa às questões civis prejudiciais à questão penal) terá, por ora, de ser integrada pelo intérprete por via do artigo 4.º do Código de Processo Penal, aplicando-se por analogia o mencionado artigo 400.º, n.º 3 deste mesmo diploma (que remete para o regime do Código de Processo Civil) ou, se assim se entender, aplicando-se diretamente as normas de direito processual civil (enquanto critério autónomo de integração de lacunas previsto no artigo 4.º do Código de Processo Penal).
  6. São duas vias (previstas neste artigo 4.º do Código de Processo Penal) que exprimem o mesmo princípio da igualdade (entre questões civis prejudiciais e pedidos de indemnização civil; entre questões civis no processo penal e as mesmas questões civis fora do processo penal) e que redundam na aplicação do mesmo regime jurídico: a impossibilidade de recurso em razão da dupla conforme prevista no artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal não retira a possibilidade de recurso das questões civis prejudiciais, nos termos dos artigos 721.º e seguintes do Código de Processo Civil. 
 
 
II - Quanto à “incompleição do julgado”
 
 
  1. Na decisão de primeira instância não operou, manifestamente, a técnica de subsunção enquanto “modelo dedutivo de fundamentação” (Karl Larenz) da matéria de facto dada como provada nos respetivos autos aos elementos normativos do tipo legal de crime de peculato (artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal).
  2. O “engrenar de inferências” (Karl Larenz) – em raciocínio sistemático de conexão (identificação) entre o texto da norma abstrata, a determinação dos conceitos em pormenor e os factos concretos (em continuidade recíproca) – que incorpora a técnica de subsunção constitui o ponto nevrálgico de uma decisão judicial num Estado de Direito democrático
  3. Sobretudo se a decisão judicial de referir a um tipo legal de crime cujos elementos normativos envolvem conceitos “carecidos de preenchimento valorativo” (Karl Engish), na circunstância de natureza jurídico-civil (como é o caso do tipo legal de crime de peculato).
  4. Na decisão penal de primeira instância depara-se-nos, com efeito, uma clara falha na técnica de subsunção utilizada em que nem sequer se faz o juízo de mediação de fatores jurídicos não penais (nomeadamente jurídico-civis) entre os factos concretos e o preenchimento de elementos normativos do tipo legal de crime.
  5. É esta falha na decisão do tribunal de primeira instância que se reconduz a uma “incompleição (substantiva dos fundamentos) do julgado”.
  6. Tratando-se de uma decisão sem a força legitimadora da fundamentação (argumentação) racional e sistematicamente estruturada, não pôde o tribunal superior ser persuadido por uma argumentação do tribunal de primeira instância que simplesmente não existiu.
  7. Nem, tão pouco, o puderam os destinatários da decisão (onde se inclui, obviamente, o arguido) de primeira instância que, assim, não tiveram oportunidade de impugnar fundamentos determinantes da condenação (que não existiram).
  8. Questões referidas à “entrega a título não translativo da propriedade”, à “mera detenção”, à “inversão do título da posse” e ao “exercício de funções” (que, no caso concreto, como ficou demonstrado, se relacionam, inexoravelmente, com outras questões como a da “entrega real de cheques ao portador”, a do “contrato de depósito irregular”, a do “contrato de mandato sem representação”), decisivas para a fundamentação da decisão, foram conhecidas no Tribunal da Relação do Porto pela primeira vez e, portanto, em primeira instância.
  9. Trata-se, deste jeito, de questões que, em sintonia com a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdão de 9 de junho de 2011, relatado por Isabel Pais Martins), “embora proferidas no recurso, não foram proferidas em recurso”. Sendo suscitadas pelo recorrente, pela primeira vez, no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação, a Relação delas conheceu ex novo. “Entende-se, por isso, que o recurso para o Supremo, quanto a essas questões, deve ser admitido, sob pena de supressão de um grau de jurisdição e, consequentemente, do direito ao recurso quanto a elas”.
  10. A decisão do Tribunal da Relação do Porto é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do artigo 399.º do Código de Processo Penal, quanto a estas questões que não foram conhecidas em primeira instância por se não incluírem materialmente no conceito de “dupla conforme” previsto no artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal.
  11. Assim possa o arguido, ao menos uma vez, impugnar os fundamentos de elementos essenciais à sua condenação pelo crime de peculato (artigo 375.º, n.º 1 do Código Penal).
 
 
Tal o nosso parecer,
 
Fernando Torrão
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